19 outubro 2006

Onde Judas perdeu as botas?

Maria José perguntou:
Já se sabe o local onde Judas perdeu as botas? O que fazia Judas para perdê-las, ir embora e nem se lembrar delas?

Prezada amiga Marilyn, nessa crescente onda revisionista que assola nossos tempos, é Mao que desce, é Mutantes que sobe, é Dan Brown que populariza o mito de Madalena on-the-rocks, líquida e cálice fonte da vida e da verdade, acabaram se salvando também o Wilson Simonal e o Judas, retirado que foram da categoria “traidores do movimento”. Vamos então, querida amiga, aos novos fatos sobre este importante personagem da mitologia cristã, trazidos à luz pela tradução integral dos manuscritos encontrados em uma caverna e conhecidos como Evangelho de Judas.
Judas Iscariotes (derivado do hebraico Ish Kerioth: homem de Kerioth, cidade ao sul de Judá), teve uma infância pobre, não ao ponto da miséria, mas foi bastante privado de coisas que seus amiguinhos de Judá estavam acostumados, pão de trigo e aveia achatado e comido aos nacos com mel e tâmaras. Azeite e carneiro desfiado. Roupas de tecidos finos vindos do Egito e da Pérsia, sandálias de couro de cabra e muito mais. Para Judas, só restavam os restos. Vestes de primos, pão sem aveia e mel, sopa de tutano de osso de carneiro e outros itens off price do mercadão central lá de Kerioth. Embora de resultado óbvio, esse modo de viver acabou por construir em Judas uma psiquê marcada pelo dualismo entre o ser e o ter. Se, por um lado, sua vida humilde despojava seu ego (na época ainda não tinha esse nome porque Freud estava bem longe no horizonte) de adornos e confeitos materiais, essa mesma falta também alimentava certo rancor da parte dele para com seu grupo sócio-histórico. Posso te dizer, Marilyn, que foi nesse embate que se construiu a personalidade de Judd, como era chamado pela turma, na época. Um embate cruel entre ser e ter, um briga poderosa entre o modus vivendis da Índia e dos States, dilacerando a alma do coitado, deixando-o sem rumo, paralisado pelo tudo-nada das inúmeras possibilidades de seu ser. A adolescência de Judas seguiu tranqüila, na medida em que podemos dizer tranqüila, de uma adolescência marcada pela necessidade de auto-afirmação e da supracitada dúvida entre o ser e o ter.
Logo depois que terminou o lavoreth sapie, que corresponde ao nosso atual ensino médio, Judd se lançou ao mundo que se constrói e se apresenta a um jovem adulto no vigor de todos os seus desejos (tanto físicos como emocionais). Foi trabalhar no curtume do tio e sua responsabilidade era limpar e preparar as peles dos animais abatidos para que pudessem ser aproveitadas na confecção de roupas, sapatos e acessórios para o povo que tinha moedinhas de ouro para pagar por eles.
A vida de Judas girava em torno do trabalho, que fornecia o substrato para sua existência e em torno de sua efervescente busca pela verdade e o equilíbrio entre suas necessidades básicas humanas e seus possíveis excessos. Preparar o couro poderia, nessa ótica, ser visto como uma metáfora da busca de sua jornada individual, ou em termos junguianos, seu processo de individuação: preparar a pele é construir o arcabouço que sustentará todas as vivências futuras de seu animus e de sua anima. Mas, como eu disse logo no começo, Judas era uma pessoa dividida pelo desapego de ser e o desejo de ter, E, por mais que sua jornada se elevasse, as punhaladas do querer ainda cravavam seu destino. A pobreza da infância o havia marcado muito. O fato de lidar com o couro também não ajudava a melhorar as coisas. Era dele que saia a matéria prima para artefatos que tanto ele havia cobiçado durante seu período de penúria. Sandálias, cintos, bainhas de punhais, pulseiras, botas, tudo estava lá, potencialmente, em suas mãos. Seu querer material era o magneto que o segurava e o afastava da elevação espiritual. Por conta disso, o jovem Judas Iscariotes economizou cada moedinha de ouro que chegou até ele durante dois anos. Privou-se de alimentos supérfluos, de bebidas fermentadas e de roupas mais confortáveis para realizar um antigo sonho: comprar uma bota de couro de cabra feita na Pérsia da marca Ohp anah khein e vendida nas tendas multimarcas da avenida central, uma espécie de Rodeo Drive, de Kerioth.
E lá foi ele, depois de dois anos, comprar suas botas. Estava excitadíssimo, o sonho de uma vida inteira, simbolicamente, estava sendo realizado. Nada de sofrer mais, por não ter. Nada de deixar de ser, por não ter.
Judas chegou emocionado em casa, com o embrulho de pelica que acondicionava as botas. Tomou um banho, espalhou uma pasta de mel e cânfora em seus pés cansados, enrolou-os em uma toalha quente e esperou a calma balsâmica tranqüilizar seus artelhos. Depois, colocou suas roupas mais bonitas (não necessariamente as mais novas) e vestiu finalmente seus artefatos de couro de cabra. Judas se sentiu bem, se sentiu muito bem, como nunca havia se sentido antes na vida. Aquela mistura de desejo realizado, satisfação garantida e conforto extremo, proporcionada pelo forro duplo de couro de porco e pelica, misturados à elegância do couro de cabra, perfeitamente trabalhados pelos sapateiros persas, provocou em Judas algo parecido à calma que os amantes experimentam depois de terem satisfeitos suas necessidades carnais. Judas chorou. Verteu lágrimas de felicidade, de comoção pela vida dura que seus pais haviam levado em sua infância. Derramou lágrimas por ter atingido seu sonho.
Durante as semanas que se seguiram, Judas e suas botas formaram um único ser. Eram a mais perfeita tradução da idéia de acoplamento estrutural cunhada por Maturana e Varela quase dois mil anos depois. Por mais que ele as usasse, seus pés não doíam, não cheiravam mal e elas permaneciam intactas mesmo diante das chuvas e tempestades que enfrentavam. Seus pés mudavam e as botas mudavam com eles.
Nesses tempos iniciais, a bipolaridade da psique de Judd permaneceu tranqüila, parecia até mesmo que tudo havia sido resolvido e que ela não existiria mais. E foi assim por um bom tempo, meses, anos, Judas e suas botas, para lá e para cá, conforto extremo sempre.
Depois de muito tempo, o homem de Karioth começou a sentir, sem saber ao certo, um desconforto emocional, uma insatisfação na alma provocada por um querer ser, mais do que ter. Era como se o estado de plenitude física desencadeado pelas botas entorpecesse seu corpo e o ruído de fundo que ele fazia (na forma de dores e incômodos), subitamente, silenciasse, deixando os anseios da alma em evidência.
E assim foi, cada vez mais nítido e claro, seu espírito pedindo mais, querendo compreender mais, envolver-se mais, ao ponto de Judas começar a desejar pelo silêncio de seus desejos, de suas dúvidas. Ao ponto dele não mais querer o conforto de seus pés e a conseqüente amplificação que ele (o conforto) induzia em seus questionamentos emocionais e/ou metafísicos. Para ele, só existia uma forma de resolver essa situação: livrar-se das botas persas de couro de cabra e forro de pelica e porco. Mas como fazer isso num sistema pé-bota em perfeita harmonia? Como se livrar de algo que era a resposta para todas a suas mágoas infantis? Nunca ele poderia se livrar delas, Judas sabia disso com clareza e aí então fez a única coisa possível de ser feita: caminhou com elas. Andou, andou e andou pelas terras vizinhas, pelas terras conhecidas, por toda Judá, pela Pérsia, pelo Egito, Babilônia, caminhou com elas por anos, indo o mais longe que pode ir. Conheceu povos diferentes e costumes estranhos. Andou até onde pode, depois voltou e, apesar do conforto, suas botas começaram a se desfazer, mansamente começaram a desintegrar-se. Assim, em seu longo retorno para casa, para Kerioth, seus pés foram vagarosamente sendo despidos. Quando tocou o solo dos arredores de seu lar, quase mais nada existia a cobri-los. E ele pode então, adentrar sua casa descalço, mais maduro, crescido e pronto para encontrar aquele que, radical e novamente, mudaria sua vida.

Prezada Marilyn, Judas perdeu suas botas em sua própria casa depois de uma longa (em todos os sentidos) jornada de busca e crescimento que mais uma vez no remete a Jung e seu processo de individuação. Por isso que a expressão é usada, hoje em dia, para designar um lugar muito longe e inacessível, como nós mesmos o somos. Tão longe, tão perto!

2 comentários:

Anônimo disse...

Parece que além de Jasão e Eliseu, havia mais alguém na nave da Operação Cavalo de Tróia, ein ?

Anônimo disse...

enciclopédica e intertextual essa resposta é uma amálgama de bento prado jr com chicó, síntese de um estilo perspicaz e hilário.. satisfez a curiosidade.. ehehe