Eduardo Martins perguntou:
Afinal, em que consiste a tradicional festa do calendário judaico, praticada principalmente entre os judeus de Santa Catarina, conhecida como "A Farra do Goy"?
Prezado Eduardo, a princípio, o significado da palavra goy em hebraico, e encontrado no Torá, se refere à nação-povo judeu: "’Mas sereis para Mim um reino de sacerdotes e uma nação sagrada.’ Estas são as palavras que falarás para os Filhos de Israel." Shemot 19:6.
Nesse texto, a palavra goy é usada para designar os filhos de Israel. Porém, atualmente, esse mesmo termo é bastante usado pelos judeus para caracterizar os não-judeus, os assim também chamados gentios.
Com a destruição de Jerusalém no ano 70 D.C. os judeus se dispersaram pelo mundo (episódio conhecido como a Grande Diáspora). Muitos deles foram parar na Península Ibérica. Com o crescimento do cristianismo, o povo hebreu começou a ser perseguido. Em Portugal, eles tiveram uma relativa folga com a invasão dos mouros que aceitavam todas as religiões que seguissem um livro sagrado, desde que pagassem uma espécie de dízimo para eles (os mouros). Mas isso não durou muito tempo, quando os cristãos começaram a ferver de novo, os judeus se ferraram, ou se convertiam em cristãos novos ou... já era! Daí que surgiu aquele monte de novos sobrenomes todos derivados de árvores: figueira, nogueira e etc. Eram os judeus convertidos em Portugal que, mesmo assim, podiam ser identificados pelo sobrenome novo de árvores que agora possuíam.
Como todo mundo sabe, uma boa parcela deles veio parar no novo mundo, na terra brasilis. Mas, o que pouca gente sabe, é que uma parcela da população judia lusitana, recusou-se a converter-se ao cristianismo e também veio para o Brasil, só que clandestinamente. Grande parte deles se estabeleceu no sul do país, em meados do século XVII, principalmente em Santa Catarina, o que, séculos mais tarde, ironicamente, acabou por atrair os fugitivos nazistas para a mesma região.
Estabelecidos nesse estado brasileiro, os judeus não convertidos fizeram dessa terra, seu sagrado novo lar. Muito de seus costumes foram mantidos e suas festas tradicionais acabaram por enriquecer a já tão diversificada cultura local. Festas de comemoração do começo do calendário eram regadas de vinho e tortas de tâmaras e nozes. Estes festejos tornaram-se muito famosos e ficaram conhecidos para além dos muros culturais da comunidade judaica da região. O povo não judeu, assim chamado goy, tinha muita vontade de participar dessas comemorações, mas o tradicionalismo dos não convertidos impedia qualquer tentativa de aproximação da galera que não fosse da tchurma hebraica.
Depois de um tempo, começou a pegar mal esse isolamento. Por outro lado, os judeus (quase) ortodoxos sentiam que uma abertura plena para os festejos do calendário hebraico, aos gentios, poderia descaracterizar o próprio âmago simbólico dessas festas. Como então, resolver esse impasse? A resposta veio em um conselho de sábios pensadores do modo e vida judeu, realizado em Blumenau, no ano de 1948. Alfredo Rosa Rosenberg e Jonas Bauer escreveram um interessante livreto (Povo Hebreu, uma Nação em Forma de Coração, editora Paz & Terra, 1957, mas infelizmente fora de catálogo) contando toda a saga desse Conselho de 48 e suas importantes decisões. Sendo que a mais importante delas foi ter instituído a atualmente famosa “Farra do Goy”. Nela, a almejada e controlada mistura de culturas, foi finalmente colocada em prática. A festa consiste em duas partes básicas. Na primeira delas, o povo não-judeu, porém simpatizante, reunia-se em rodas animadas por muito vinho, tâmaras secas e olhadelas furtivas para as mocinhas judias que traziam os quitutes e os bebes. Nessa parte, o gentio se animava e ficava soltinho. Quando estavam no ponto, eram colocados para dançar e farrear com a comunidade judia (que também estava no mesmo grau etílico). Danças, conversas, brincadeiras, uns amassos daqui e dacolá , tudo fortemente controlado pelos mais velhos, permitiam uma aproximação (também controlada) de ambos os povos. Apesar dessa farra acontecer em uma única data específica do calendário, a longo prazo, ela também permitiu um suave mistura da nação judia ex-ortodoxa catarinense e os goys. Fazendo com o próprio termo acabasse em desuso na região e só sobrevivesse no nome dessa famosa festa.