22 fevereiro 2007

Sobre modelos de óculos escuros usados em enterros de figurões

Goiaba perguntou:

Tenho observado, até por uma razão de ofício, alguns enterros de figurões, geralmente de conduta suspeita quando vivos. Nestas ocasiões ninguém relativamente colunável quer perder a boca. Minha pergunta é: O que os modelos de óculos escuros usados nestas ocasiões ligam o usuário (dos óculos) ao defunto?


Prezado Goiaba, de uma maneira clara e simbólica, os grandes espaços formados pelas lentes escurecidas dos óculos remetem a uma abertura e amplificação do olhar do usuário vivo. É como se exacerbássemos a capacidade dos olhos de serem a janela da alma, escancarando-os e protegendo-os ao mesmo tempo. Por um lado, a lente imensa amplia a capacidade de passagem de informações, o fluxo de sentimentos entre o interno e o externo. Entre o dentro de nós e o fora de nós, entre o corpo e a alma, a noite e o dia, o morto e o vivo. Por outro lado, a tonalidade das lentes, faz com que esse transmutar de energias seja feito de maneira plena e suave.

Acredito que o modelo de óculos amplos e parabólicos, comumente usados pelos colunáveis, em enterros de defuntos suspeitos, retratam essa característica de passagem e sinergia entre o mundo espiritual e material que, nos colunáveis (e nos defuntos suspeitos) está bastante desequilibrado. Além de também simbolizar a relativa ambivalência do estar e querer aparecer das celebridades e, ao mesmo tempo, não querer ser associadas aos aspectos negativos da vida vivida pelo famigerado defunto. Para maiores informações, recomendo a leitura do delicioso livro do sociólogo pós-moderno Paul Amorim Rossetti, chamado “Do you wanna a frame for your soul's window? (Pergamon Press, 1987) em que ele discute, a partir de situações cotidianas, a capacidade do homem de ampliar os significados e significantes (e resignificá-los a todo instante conforme sua rede particular de significações) transformando situações ancestrais (como enterros) em brand new experiences do olhar.

O que é a Farra do Goy?

Eduardo Martins perguntou:
Afinal, em que consiste a tradicional festa do calendário judaico, praticada principalmente entre os judeus de Santa Catarina, conhecida como "A Farra do Goy"?

Prezado Eduardo, a princípio, o significado da palavra goy em hebraico, e encontrado no Torá, se refere à nação-povo judeu: "’Mas sereis para Mim um reino de sacerdotes e uma nação sagrada.’ Estas são as palavras que falarás para os Filhos de Israel." Shemot 19:6.
Nesse texto, a palavra goy é usada para designar os filhos de Israel. Porém, atualmente, esse mesmo termo é bastante usado pelos judeus para caracterizar os não-judeus, os assim também chamados gentios.
Com a destruição de Jerusalém no ano 70 D.C. os judeus se dispersaram pelo mundo (episódio conhecido como a Grande Diáspora). Muitos deles foram parar na Península Ibérica. Com o crescimento do cristianismo, o povo hebreu começou a ser perseguido. Em Portugal, eles tiveram uma relativa folga com a invasão dos mouros que aceitavam todas as religiões que seguissem um livro sagrado, desde que pagassem uma espécie de dízimo para eles (os mouros). Mas isso não durou muito tempo, quando os cristãos começaram a ferver de novo, os judeus se ferraram, ou se convertiam em cristãos novos ou... já era! Daí que surgiu aquele monte de novos sobrenomes todos derivados de árvores: figueira, nogueira e etc. Eram os judeus convertidos em Portugal que, mesmo assim, podiam ser identificados pelo sobrenome novo de árvores que agora possuíam.
Como todo mundo sabe, uma boa parcela deles veio parar no novo mundo, na terra brasilis. Mas, o que pouca gente sabe, é que uma parcela da população judia lusitana, recusou-se a converter-se ao cristianismo e também veio para o Brasil, só que clandestinamente. Grande parte deles se estabeleceu no sul do país, em meados do século XVII, principalmente em Santa Catarina, o que, séculos mais tarde, ironicamente, acabou por atrair os fugitivos nazistas para a mesma região.
Estabelecidos nesse estado brasileiro, os judeus não convertidos fizeram dessa terra, seu sagrado novo lar. Muito de seus costumes foram mantidos e suas festas tradicionais acabaram por enriquecer a já tão diversificada cultura local. Festas de comemoração do começo do calendário eram regadas de vinho e tortas de tâmaras e nozes. Estes festejos tornaram-se muito famosos e ficaram conhecidos para além dos muros culturais da comunidade judaica da região. O povo não judeu, assim chamado goy, tinha muita vontade de participar dessas comemorações, mas o tradicionalismo dos não convertidos impedia qualquer tentativa de aproximação da galera que não fosse da tchurma hebraica.
Depois de um tempo, começou a pegar mal esse isolamento. Por outro lado, os judeus (quase) ortodoxos sentiam que uma abertura plena para os festejos do calendário hebraico, aos gentios, poderia descaracterizar o próprio âmago simbólico dessas festas. Como então, resolver esse impasse? A resposta veio em um conselho de sábios pensadores do modo e vida judeu, realizado em Blumenau, no ano de 1948. Alfredo Rosa Rosenberg e Jonas Bauer escreveram um interessante livreto (Povo Hebreu, uma Nação em Forma de Coração, editora Paz & Terra, 1957, mas infelizmente fora de catálogo) contando toda a saga desse Conselho de 48 e suas importantes decisões. Sendo que a mais importante delas foi ter instituído a atualmente famosa “Farra do Goy”. Nela, a almejada e controlada mistura de culturas, foi finalmente colocada em prática. A festa consiste em duas partes básicas. Na primeira delas, o povo não-judeu, porém simpatizante, reunia-se em rodas animadas por muito vinho, tâmaras secas e olhadelas furtivas para as mocinhas judias que traziam os quitutes e os bebes. Nessa parte, o gentio se animava e ficava soltinho. Quando estavam no ponto, eram colocados para dançar e farrear com a comunidade judia (que também estava no mesmo grau etílico). Danças, conversas, brincadeiras, uns amassos daqui e dacolá , tudo fortemente controlado pelos mais velhos, permitiam uma aproximação (também controlada) de ambos os povos. Apesar dessa farra acontecer em uma única data específica do calendário, a longo prazo, ela também permitiu um suave mistura da nação judia ex-ortodoxa catarinense e os goys. Fazendo com o próprio termo acabasse em desuso na região e só sobrevivesse no nome dessa famosa festa.

21 fevereiro 2007

Por que ao bocejar quem está ao lado automaticamente boceja também?

Jaqueline perguntou:
Porque ao bocejar quem está ao lado automaticamente boceja também?

Icky Rocco perguntou:
Por que quando estamos conversando com uma pessoa, e esta boceja, automaticamente bocejamos também?

Prezados amigos sonolentos, o bocejo faz parte de um conjunto de comportamentos humanos chamados sociais contaminadores ancestrais. Outros comportamentos pertencentes a essa categoria é a famosa vontade de rir em velórios e missas e também a vontade de vomitar quando alguém acabou de chamar o Hugo, ao seu lado.
São comportamentos que, de uma maneira ou de outra, garantiram a sobrevivência de nossa querida espécie nesse mundo cão e cheio de perigos em que surgimos e vivemos até hoje (por enquanto, pelo menos!). Como todo mundo está careca de saber, o bocejo normal é um indicador de sono à vista. Regiões localizadas no tronco cerebral são responsáveis pelo ciclo sono-vigília, o nosso querido fluir entre períodos de estar acordado e dormir que os primatas tanto prezam. É uma loucura, quando dormimos, as áreas que nos mantêm acordados são desativadas por neurotransmissores inibitórios da turma do GABA e similares. Por sua vez, os circuitos ascendentes que fazem a gente viver acordado ficam todos acesinhos, louquinhos para passar impulsos elétricos para lá e para cá. Como disse anteriormente: uma loucura!
Quanto ao nosso querido bocejo, temos que lembrar que, se hoje em dia, ele no máximo provoca uma resposta similar no colega ao lado. Há muito tempo atrás, ele serviu para muito mais coisas.
Voltemos aos nossos primórdios hominídeos. Imaginem a vida nas cavernas, os primatas humanóides empoleirados uns sobre os outros, fugindo do frio, esquentando-se no contato dos corpos peludos e da fogueira feita com gravetos. Imaginem que esse esfrega-esfrega cotidiano deve ter mandado os períodos de cio para as picas (ops!). Ou seja, esse contato próximo recorrente, acabou com os períodos restritos de sexualidade que costumava acontecer nos outros mamíferos (cio) fazendo com que toda noite fosse uma legítima festa da macacada. Entenderam? Cause tonight is THE night! Toda noite era aquele fuzuê na caverna. Ninguém era de ninguém, hominídeo com mulherídeo, hominideo com hominídeo, mulherídeo com mulherídeo.
Nem preciso dizer que depois de um tempo, as raves tum-tum-tum da pré-história começaram a varar a noite e a continuar pelo dia afora. Noites e dias sem dormir embalados por peiotes e cogumelinhos estranhos encontrados no meio da caverna. Nem preciso dizer que, com o tempo, o povo foi ficando fraco, parou de cuidar direito da cria, nem transar mais eles conseguiam e, como diria Hipócrates, “tudo faz bem e tudo faz mal, depende da dose!”, com isso, a galera primata começou a minguar. Os poucos primatas que sobraram foram justo aqueles que conseguiam ir para a balada do roça-roça na noite, mas que dormiam antes, bem cedo, e depois acordavam lá pelas duas da manhã e caiam na gandaia até as primeiras luzes do dia, e dormiam de novo e acordavam renovados, para os afazeres diários. Porém, dormir cedo era um problema. Ainda mais com a ansiedade básica que batia nos corações, só de pensar na festa mais à noite. O que essa turma organizada (e a única que sobreviveu) fazia para dormir cedo? Bocejava. Um começava daqui, outro começava dali, depois de um tempo estava todo mundo bocejando sincronizados. Era como um ritual, um via o outro bocejando e forçava o bocejar também. Como o bocejo era (é) um sinal do sono que vem vindo, todo mundo, depois de um tempo, estava dormindo.
Com o passar das gerações, esse modo de vida sincronizado sobreviveu no modo de vida dos hominídeos sobreviventes que permaneceram adaptados ao seu meio. O que era apenas um comportamento intencional de bocejar coletivo foi se transformando em uma resposta comportamental contagiante. Ou seja, os indivíduos que eram mais influenciados pelos bocejos alheios e bocejavam também, dormiam mais rápidos, descansavam mais, participavam mais das festas orgiásticas noturnas e, por conseguinte, se reproduziam mais. Por sua vez, se reproduzindo mais, aumentavam as chances de seus genes facilitadores do contágio por comportamentos sociais serem transmitidos para seus descendentes. Concluindo o raciocínio, depois de muitas gerações, só sobraram os descendentes que bocejavam facilmente quando viam alguém bocejar perto deles (mesmo que nem mais dormissem juntos nas cavernas e etc.). É desses indivíduos que somos todos descendentes, hoje em dia. E esse comportamento contagiador é tão forte, atávico e arquetípico que gerou duas perguntas parecidas em pessoas diferentes e que nem se conhecem, sobre o mesmo asssunto do bocejar.